segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

AQUELE MOÇO DA OBRA

Lá vem ele. De roupa trocada, cara lavada, barriga forrada e sorriso no rosto. Simpatia deve ser sinônimo de respeito ao trabalho. Estar de má cara não deve ser bem visto. As manchas na roupa e as calças remendadas revelam as quantas batalhas. O dedo rasgado e os arranhões no braço remetem ao esforço atual. O roxo da unha já é tradição, mero percalço e, até, fonte de alguma anedota.

A sua luta é diária, inglória, ativa, sofrida. Já lá vão anos. Nem se lembra quantos. É mais do mesmo, sem trégua. Não reclama, é-lhe indiferente. Já nem sabe (ou cabe) razão. Sofre contido, quando tem tempo para tal. Ele bem que gostaria de parar, mudar, mas não é fácil. Nunca foi, para ele e para muitos outros.

Estão sempre a labutar, colegas. Sorriem, discorrem em conversas, contos, estórias, piadas. Cantam alto e mal. Dançam o que conseguem, objeto de mais risadas e futuras ofensas. Ofender, aliás, é não ser parceiro, aliado, companheiro das horas difíceis.

Não podem parar, prazos a cumprir. O atraso, o erro, é sempre deles. Doenças e outras enfermidades são somente para os outros. Fadiga física, há muito, não existe. Enrijeceu, músculos e nervos. Calejou. Habituou.

Ele tem de estar apto, são, presente. Diariamente, onde for, para quem for. Não há horário vago, lacuna, dentro de sua rotina. Rotina, aliás, é um nome bonito para a vida que leva.

Quebrar, arrebentar, desmontar, soltar. Destruir. Juntar, embrulhar, varrer, carregar. Subir, descer, levar, trazer. Preparar, medir, calcular, errar. Desfazer, refazer. Ouvir. Segurar. Levantar, montar, moldar, soldar. Erguer, fabricar, pintar, apertar. Construir. E, como sempre, amanhã tem mais.


sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

BOLOTA DA SORTE

 

Madalena chega a casa, me procura e vem a saltitar em minha direção. Me chama, pede para eu abrir a mão e diz que me dará um presente. Trata-se, segundo ela, de uma bolota da sorte. Coloca a prenda em minha mão, me dá um beijo daqueles molhados no rosto (ela deu para beijar as pessoas, agora…) e segue sua vida. Pois é, em suas andanças pelo bosque, achou uma bolota da sorte e resolveu trazer para o pai.

Confesso, fiquei emocionado, paralisado com o gesto. Acredito que não deva ser todo o dia que ela encontre uma bolota da sorte pelo bosque. Penso que, para ela, uma bolota da sorte deva ser algo importante o suficiente para ser tratada como um presente, uma dádiva. E, logo eu, recebi a prenda.

Então, comecei a pensar mais sobre o assunto. Bolota da sorte. Qual a razão que ela teria para dar, justo para mim, a bolota? Falta-me sorte? Minha filha me vê como um azarado? Ela sabe o que é azar?! Preciso de mais coisas boas na vida? A bolota é mesmo da sorte?! Onde ela achou?! Posso mais?! O bosque!

Ou, simplesmente, minha filha entrou em casa, me viu sentado em um canto, com uma cerveja na mão, cabisbaixo ou pensativo, e resolveu me alegrar com um singelo afago.

Olha, não sei. O fato é que a bolota da sorte foi a melhor coisa do meu dia. Me fez ver (ou relembrar) que problemas podem ser resolvidos com pequenas atitudes.

Agora, ando a carregar uma bolota pelo bolso. Fora as formigas na calça, mal não faz.

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

A NOVIDADE


São 8:30 da manhã de uma quinta-feira, 27 de novembro do longo ano de 2015. Café da manhã tomado, mas a preguiça perdura.

Recebo mensagem da Maria da Paz, que ainda está no Nepal, a perguntar onde eu estou e se podemos falar por videochamada. Respondo, prontamente, que estou em casa e me preparo para ligar o computador. Desperto na hora, maldita adrenalina. Afinal, após minha volta para o Rio de Janeiro, qualquer mensagem da Paz é acompanhada de certa apreensão. Seria alguma notícia triste? Aconteceu algo de errado? Outro terremoto no Nepal? Perguntas que me faço enquanto o skype tentar conectar.

Eu voltei para o Brasil, no início de novembro, para procurar trabalho e tentar retomar nosso cotidiano, após o período sabático. A Paz ficou no Nepal, ao lado dos outros voluntários, para ajudar a finalizar algumas etapas dos projetos que participamos. Por tudo isso, comunicação que envolvesse chamada de vídeo no começo da manhã era, para mim, um motivo de preocupação.

Faço a chamada e, do outro lado, aparece uma sorridente e feliz Maria da Paz. O que me deixa confuso. Será que um terremoto fez com que batesse com a cabeça e terminasse de enlouquecer?  Ou esperou o marido cruzar o mundo de volta ao Brasil para começar a beber o famigerado raksi (um tradicional destilado produzido, geralmente no quintal de casa, a partir do arroz ou milhete e cujo teor alcoólico varia de acordo com a gana do produtor). Não sei. Se calhar estava feliz só de estar longe do esposo. Justo.

Fato é que, enquanto, trocamos as primeiras palavras, ela vai se empolgando, com mais sorrisos e joguinhos de palavras (sinal de embriaguez?). E eu, cismado, vou respondendo ao que ela pergunta com certa indiferença ou antipatia, afinal, era de manhã e meu humor, quando resolve acordar, só se revela depois do almoço.

E a Paz, toda serelepe, com um chumaço de folhas na mão. Pronto, vai me dizer algo. Trabalho? Projeto? Mais um projeto? Vai ficar no Nepal de vez?! Tenho de voltar para o Nepal?! Como pagarei uma passagem para o Nepal?! Lá vem ela com ideias!

Então, ela aponta algo parecido com um palito na direção da câmera. “Sabe o que é isto?”, pergunta ela. Respondo com meu tradicional (e sincero) “não faço a mínima”. Um tanto rude de minha parte, talvez. E, mesmo assim, ela se inflama, rindo. Estranho. Ela nunca reagiria assim ao meu “não faço a mínima”. Eu tento adivinhar outra vez, afirmando ser um termômetro e que ela estava muito doente, visto o comportamento atual. Ela balança a cabeça negativamente e aponta para as duas riscas azuis no meio do não-termômetro. Olho para aquilo como quem avista uma foca de óculos escuros e terno verde enquanto ela solta o grito: Estou grávida!

Neste instante, de um lado, uma pessoa com as bochechas rosadas e olhos marejados sorri o sorriso mais largo que já vi. Do outro, está uma pessoa perplexa, com ar matuto e feição de que, provavelmente pela primeira vez na vida, não tem resposta pronta para coisa alguma. Histeria de um lado, reticência do outro.

Ela, com um teste de gravidez em uma das mãos e um copo com vinho do outro, propõe um brinde. Eu me debruço contra a tela do computador, com a esperança de o dispositivo poder me sugar e transportar para o Nepal. Para fazer o que? Nunca saberei, pois, o débil laptop é incapaz de acompanhar meu desejo.

Ainda sem dizer se estou ou não feliz, corro para a geladeira a procura de algo para brindar. De manhã? Por que não?! 

A Paz, então, começa a tentar explicar o que estava acontecendo. Entre seguidos casos de mal-estar e enjoo, fizera o teste de gravidez e, após a indicação positiva, já até conseguira, com a ajuda dos amigos nepaleses, uma consulta médica. Tal consulta a ser realizada em um futuro próximo, logo depois de ela voltar das montanhas. Sim, Maria da Paz, a grávida, tinha uma visita marcada em umas vilas que sofreram com os enormes deslizamentos de terra ocasionados pelos terremotos. A gestante iria, inclusive, fazer longas caminhadas. Se tudo der certo e ela voltar dos Himalaias com saúde, seremos pais!

E pensar que, pouco mais de um ano atrás, optamos por largar tudo e seguir viagem para o dito Oriente. Uma (louca, um tanto obtusa e, claro, fantástica) ideia que partia de um desejo de descansar o corpo e mente. Se desorientar do que nos era cotidiano e procurar aliviar a dor por não conseguirmos ter filhos. E, no fim da viagem, o presente maior.

E, pensando nisso tudo, após ela perguntar se eu estava contente com a notícia. Eu respondo, com um sorriso comedido (e sem jeito…) que sim, que aquilo era a novidade de nossas vidas.

Por essas e outras que digo…essa viagem daria um livro…

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

DOIS



Dia desses, a Carolina fez aniversário. Dois anos. Dois!

O tempo voou. Com tanta coisa acontecendo, estes dois anos passaram rápido demais. Dizem que isso acontece quando temos o segundo filho. Que, enquanto com o primeiro tudo é novidade e vivenciamos cada acontecimento, o segundo é mais automático, com decisões mais rápidas, métodos e conceitos estabelecidos. Sem (tempo para) muitas frescuras. O bicho nasce e vai para o mundo.

Teve festinha. Bolo, bolas, balões. Gente, presente, correria, gritaria, sujeira, baderna. Tudo dentro do (novo…) normal, festa clássica de criança.

A mãe e a irmã estavam ansiosas, loucas para o dia de aniversário. Queriam festa (e dos animais!...). Música, dança, lanchinho. Amigos, família, alvoroço, balbúrdia, encontrões, mais presentes.

Carol não fazia muita ideia do que teria pela frente. Uma festa. Aniversário temático (dos animais!...), dia de comemorar os anos. Dois. Se quer saber, eu acho que ela não estava nem aí para a data especial ou o número em questão. Ela até sentia, pela vibração da mãe e alegria da mana, que algo de grandioso estava por vir.

Se calhar, estava à espera de um queque gigante, um balde cheio de uvas, um telefone para poder falar com as vovós e jogar no chão sempre que quisesse ou acesso irrestrito à geladeira e armários de casa.

O fato de ter uma festa especial para ela pareceu não ser uma questão que a fizesse mais ou menos feliz (ao contrário da mãe ou irmã). O que a deixou em êxtase (além dos enormes balões dos animais!) foi ver entrar pessoas para dentro de casa, uma a uma. Para ela, era mais gente para brincar, pular, correr, destruir e dar porcarias para comer. Mais cobaias para suas peripécias, mais amigos para viver o momento. Ela é disso, vive o agora como se não precisasse do depois.

Até teve música dos parabéns. Todos cantaram, felizes. Ela só abriu a boca para comer as guloseimas que “forravam” o bolo. Grande Carol! Preenche a sua vida com o que quer, e não com aquilo que é suposto fazer. Que se lixem as normas e padrões, que se quebrem os paradigmas. Já é assim e só tem dois.



segunda-feira, 26 de outubro de 2020

O ESPIRRO

 


Madalena, assim que entra na sala de espera do consultório médico, com mais 4 famílias já lá dentro, solta um espirro que “faz voar tudo para todos os lados”. Minha cara, de imediato, vai ao chão. Das faces mascaradas das pessoas, só noto os olhares assustados. Tensão no ar.

Peço desculpas a todos. Por conta da máscara, não sei se me ouviram muito bem, até porque não mostraram nenhuma simpatia pela “menina espirrenta” ou empatia à situação do pai.

Na hora trago a Madalena para o meu lado e nos sentamos, longe dos demais. Esbravejo (torcendo para que todos escutem) que ela precisa se lembrar de, sempre que for espirrar, cobrir a boca e nariz com o braço, antebraço ou, se der, o escudo do Capitão América (sim, nessa hora, tentei ser engraçadinho…em vão, aparentemente). Como espirro não é filho único, enquanto carrego no sermão higiênico, ela solta mais um! Este último, "mais volumoso", digamos assim...

Dou um pulo da cadeira, pego a ranhosa pelo braço e sigo a correr para a casa de banho.

Eu, entre limpar o nariz e voltar a lembrá-la (mais uma vez...) de levar o braço a frente da boca e nariz antes de espirrar, aguardava que o nome da Madá fosse chamado e saíssemos do lavatório direto para a sala do médico.

Não foi o que aconteceu. Voltamos para sala. Eu, cabisbaixo, evito cruzar olhares com as outras famílias. Vergonha, embaraço. Minha vontade é de caber dentro da mochila da Madá.

Ela? Criança, nem aí. Esfrega o nariz, funga, força a tosse, sorri. Parece gostar de me ver em desconforto. Não satisfeita, começa a dançar na sala. Passos largos, usa de toda a pista de dança (leia-se, sala de espera do hospital). Uma outra menina parece gostar da cena artística da Madalena. Não tarda e tenta levantar-se para dançar junto com minha filha. A mãe dela diz não, segurando o seu braço e cochichando algo no ouvido (provavelmente algo do gênero "sai de perto que aquela menina tem o bicho nela”). A menina se senta. Eu rogo para a Madá fazer o mesmo. Em vão.

A essa altura, claramente, eu estou nas mãos da minha filha de 4 anos e de sua gripe/virose. Os outros pais, enfim, parecem perceber minha condição de inferioridade. Eu torço para que sim. Que tenham pena de mim, que relevem a atitude involuntária da minha filha e que achem que ela está “somente gripada”.

A médica chama o nome da Madalena. Saímos da sala com o (meu) desejo de nunca mais encontrar aquelas pessoas na vida.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

O MASCARADO

 







Já lá vão uns bons meses usando máscara e, mesmo assim, não dá para dizer que estou habituado ao novo utensílio diário, bem como ao cotidiano no qual tal objeto é referência.

Ainda mais eu, que sou daquele tipo de bípede que se esquece de tudo, capaz de sair de casa sem as chaves ou carteira. Sabe aquela espécie bastante especial de gente que vai ao mercado e, no meio do caminho, lembra que está sem dinheiro ou cartão? Este mesmo que volta à casa, entra pela porta adentro, repara que deixou as luzes acesas, abre a geladeira para procurar uma coisa qualquer, bebe uma água de forma sossegada, suspira olhando para o teto e volta a sair de casa, sem levar tanto o dinheiro como o cartão. Então, eu sou desse grupo aí! E, convenhamos, a máscara, em si, é um objeto perfeitamente esquecível (embora, não desprezível). Para mim, então, esquecer da máscara tornou-se mais fácil que respirar.

Mas, pronto, tenho me (es)forçado para criar o hábito de ter um exemplar sempre em locais específicos e fáceis de lembrar. Mochilas, carro, bolsos das calças (!).

Vejo uma melhora clara, desde o começo da orientação ao uso das máscaras até agora. Já só esqueço vez ou outra (tal qual o descuido de fechar o zíper das calças). Meus problemas com as máscaras agora são outros.

Para começar, não existe um dia em que eu não cometa ao menos umas 350 ditas infrações ao utilizar a máscara. Não é só uma questão de esquecimento ou algum (ou muito) desprazer. Estou falando de certa falta de capacidade cognitiva e um considerável desajuste motor.

Ainda no começo desta chatice toda de coronavírus, usava a máscara com uma raiva tão grande quanto o cuidado que tinha com ela. Sim, porque, na época, as máscaras eram tão caras que estava mais barato trocá-las por um rim no mercado negro. Então, usar com cautela, manter limpa, tratar bem e dar carinho, era meu lema de vida.

O meu tipo de máscara era (e é…) daquelas mais simples, descartáveis, com a parte da frente azul e a interna branca. Nunca fui de usar as personalizadas, coloridas, “bonitinhas”, de pano ou tecidos mais resistentes (ao vírus e afins). Não tenho capacidade para gerir a correta limpeza desse tipo de apetrecho. E não confio em minha capacidade de manter as tais máscaras personalizadas sob minha batuta por muito tempo. E, no caso das mais simples, era usar com o devido cuidado até ela, milagrosamente, arrebentar uma das fitas que prende a máscara as orelhas.

Fato, elas sempre arrebentam. E, costumeiramente, isso ocorre quando estás prestes a entrar em algum recinto cuja utilização da máscara é obrigatória. E ela é a única na mochila. Ou no bolso!

Além do que, as máscaras descartáveis facilitavam o meu desapego as mesmas. Ainda mais pelos constantes problemas e percalços que tive com o manuseio delas.

Uma joguei fora porque estava mascando um chiclete. Ao notar que era hora de me livrar da goma, levei a mão na direção da boca, abaixei a cabeça e soltei graciosamente o chiclete. A guloseima, que deveria usar da força da gravidade e rumar à palma da minha mão, nunca atingiu seu destino final. Explodiu na máscara e se aconchegou entre a mesma e a minha barba. Nada adiantou xingar a máscara, o dono da máscara, o chiclete e o coronavírus. Tentativas de retirar a goma sem prejudicar a máscara (ou minha barba) foram em vão. Máscara no lixo e a utilização de uma nova (que vem com aquele tradicional cheiro de coisa ruim e que ninguém sabe o que é).

Outra, novinha em folha, joguei fora porque, aparentemente, um chocolate não é capaz de atravessar os microporos da máscara e chegar a minha boca. O resultado foi uma mancha marrom na máscara, que só aumentou com a minha tentativa frustrada de passar o dedo de modo a tentar limpá-la. Ainda ousei continuar meu caminho com a peça, porém, após ser perseguido por moscas, desisti da máscara. Lixo.

Umas duas outras “perdi” por elas terem caído no chão. Não podemos usar uma máscara que caiu no chão, certo? Ainda mais se as máscaras teimam em imitar o pão com manteiga e a parte da máscara que atinge o chão virada para baixo é justamente a parte que está em contato com a boca e nariz.

São tantas as máscaras, tantos os dias mascarado, tanto tempo passado a tentar se proteger, a procurar evitar o diferente, que tenho uma certa aflição de estar me acostumando com o não-tão-novo adereço facial. E isso me irrita ainda mais que prender a máscara na maçaneta da porta ou viver a desenrolar os fones de ouvido das mesmas. Me angustia ter de pensar que “esta nova forma de viver o mundo” de que tantos vem falando, envolve ter seu sorriso escondido por um pedaço de tecido malcheiroso. O mundo “lá fora” já estava enfadonho o suficiente sem isso. Quero voltar a ser um mero distraído sem máscaras.

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

SAÍRAM PARA COMPRAR QUEQUES

 







A nossa comemoração dos 10 anos de casamento deu-se com uma viagem pelo interior do Alentejo. A dois. Afinal, era como fazíamos há 10 anos atrás! Uma viagem para celebrar e, óbvio, para descansar, relaxar, descomprimir do cotidiano lisboeta.

Temos duas meninas, sim. Uma de quatro e outra de dois anos de idade. Ficaram por casa. “Sozinhas?!” Não! Com a Ana. “Quem?” A Ana, nossa amiga. Ela é da casa, não se preocupem.

Viajamos para as cercanias de Arraiolos. Lindo, no meio da flora alentejano, entre brejos, pedras, animais e casas caiadas. E as meninas ficaram por Lisboa. Lá, com uma amiga nossa.

Descansamos, comemos, bebemos, aproveitamos nossos momentos a dois, a lembrar de nossa rica, intensa e desorientada história juntos. História, essa, que foi agraciada com a chegada de nossos amores, Madalena e Carolina, que deixamos (que nos perdoe a Ana!) praticamente sozinhas e sem notícias nossas, em Lisboa.

Fomos e não demos muitas informações para as meninas. Onde iríamos, por quanto tempo, qual razão? Deixamos na escola e nunca fomos buscá-las. Sumimos em direção a Sabugueiro. Nos escondemos dentro de uma casa de pedra, sem internet, sem barulho, sem filhas. Coitadas. A mais velha até achava que eventualmente voltaríamos. A mais nova, em seu mundo, tinha certeza de que os pais saíram para comprar queque.

O fato é que passamos um fim de semana a pensar no que melhor nos aconteceu nos treze anos em que estamos juntos, e nas idas e vindas até nossa boda de estanho: nossas lindas filhas.

Saímos do Alentejo direto para o mercado, do lado de nossa casa. Compramos dois queques e fomos para casa ter com nossas filhas.

sexta-feira, 17 de julho de 2020

BANSHEE


Diz-se, no folclore gaélico, que Banshee é um ente fantástico, um espírito feminino cujo grito seria um presságio de morte, um aviso de falecimento iminente de um membro da família a qual tal criatura estaria conectada.

O termo Banshee deriva do irlandês arcaico "Ben Síde", e corresponde a algo como fada-mulher, onde Ben significa mulher e Síde seria a forma possessiva de fada. Embora sem origem específica, historiadores traçaram as primeiras menções sobre as banshees em histórias celtas do século 8. Relatos baseados em uma tradição onde determinadas mulheres cantavam canções tristes para lamentar a morte de alguém, geralmente de sua própria família ou de famílias importantes da Irlanda.

Como toda mitologia, com o passar do tempo, os relatos confundiram-se com as crenças e ditos populares. Alguns desses relatos apresentavam as banshees como seres capazes de soltar gritos a serem ouvidos por quilômetros de distância, podendo estourar até mesmo um crânio. Outros tratavam as fadas-mulher como uma figura espectral flutuante, geralmente sendo extremamente assustadora, que apareceria sempre a lamentar.

Textos relatavam, ainda, pessoas que viam as banshees como mulheres aficionadas, tratando as mesmas como pecadoras e que aceitavam o álcool como pagamento para “cantar” a morte de alguém. Há os que clamavam que se fosse vista, a Banshee desapareceria em uma nuvem de névoa. Diziam, também, que os uivos emitidos por essas fadas seriam suficientes para relaxar até os ossos.

Sejam quais forem suas origens, as banshees aparecem na bibliografia principalmente sob um dos três disfarces: uma jovem, uma mulher ou uma pessoa esfarrapada. São comumente descritas como mulheres altas, esguias, de cabelos escorridos. Qualquer que seja a forma, porém, sua face é sempre muito pálida e seus cabelos podem apresentar-se negros como a noite, loiros como ouro ou ruivos como o sol.

Fato é que uma Banshee, segunda consta, pertence exclusivamente ao povo Celta. Ela jamais será ouvida a anunciar a morte de qualquer membro de outras etnias que compõem a população irlandesa, europeia ou mundial.

Bem, eu não creio ser de origem celta. Me vejo mais como produto de costelas oriundas de povos do hemisfério Sul. Não posso dizer o mesmo de minhas meninas. Filhas de mãe portuguesa e com os dois avós maternos do Norte de Portugal, região ocupada pelos celtas por volta do século 3 A.C., aqui podemos encontrar um fio de ligação entre os celtas e minha família, embora tal período histórico e região da Europa não permitam a conexão com o período de referência das banshees. E qual a minha razão para esta tentativa frustrada de vincular minhas filhas as fadas?

Tenho em casa algo que eu julgo ser, por falta de outra palavra, sobrenatural: o grito da Carolina, minha filha de 1 ano e meio de idade. Alguns dirão que é normal uma criança dessa idade gritar, outros dirão que o período pandêmico me deixou menos paciente e mais enjoado. Concordo com tudo. Sim, ela está na idade de gritar e berrar. Sim, ela é a segunda filha e precisa de se fazer ouvir. Sim, ela é um pequeno ser humano muito intenso e tal intensidade precisa ser manifestada de alguma forma. Não discordo de nada posto acima.

Mas há algo de diferente na criança em questão (e não vem de agora). Seus gritos, berros ou uivos são de outro mundo. Quando ela grita, o mundo parece parar. É um som alto, agudo, estridente. Porém, não é ruidoso ou barulhento. Dói ao princípio, segue como uma agulha fina e contundente e finaliza como se estivéssemos anestesiados.

Não importa quão barulhento esteja o ambiente, seu grito parece que cala tudo a sua volta. Grito, esse, que é acompanhado quase sempre de um sorriso largo e cheio de pequeninos dentes.

O grito impressiona, choca, atordoa, incapacita. Ele preenche todos os espaços, desloca a mente do corpo, enrijece os nervos, esmorece os músculos, dá início ao hiato. Tudo para, menos ela. Basta soltar a voz e os seres humanos a sua volta padecem.

Carolina não é irlandesa, (ainda) não voa, parece ser bem alegre, só canta “Baby shark”, “As rodas do ônibus”, “A dona aranha” e outras músicas infantis irritantes. Carolina não bebe álcool, não carrega (muito) ódio em seu coração, não desaparece nas nuvens ou possui um ar assustador. Não se assemelha a uma jovem ou a uma mulher e, quase nunca, está vestida de forma esfarrapada. Não é loira, está longe de ser ruiva ou pálida. Não possui quase nenhuma das características provenientes das fadas-mulher. Ainda sim, seus gritos parecem atravessar meu crânio e relaxar meus ossos.

Se calhar, com essa tal de globalização, as banshees de outrora evoluíram para o que são, hoje, pequenas, roliças e ternurentas criaturinhas que adoram gritar até estourar os vidros das casas. Digo isto porque Carolina, desde que compreendeu que poderia emitir sons usando como ferramentas seus pulmões, diafragma, cordas vocais e todo o resto do seu fantástico aparelho fonador, ainda aos 3 ou 4 meses de idade, desandou a gritar para o mundo. Berra sorrindo, chorando, triste ou alegre, do amanhecer (com o leite) ao anoitecer (com a papa). Carolina berra.

De toda a forma, a lenda diz que banshees não causavam morte; elas serviam apenas como um aviso disso. No caso da minha amada filha, se ela não causa a minha morte, cada urro histérico que dá põe fim a minha paciência e aniquila meu humor. E o único aviso que seus gritos me dão é que o histerismo começou e está na hora de ela ir para a cama, que amanhã é um novo dia.



quinta-feira, 28 de maio de 2020

JACKIE BONN


Jackie Bonn é, atualmente, minha artista preferida. Quem me conhece sabe de meus gostos musicais e de minha paixão pelas vozes femininas. Elis, Marisa Monte, Roberta Sá, Mariana Aydar, para ficar em alguns nomes pelo Brasil. Mas, a Jackie Bonn, mesmo que em curtíssimo tempo, simplesmente arrebatou-me. E afirmo: é amor para a vida toda!

Uma artista nata que, embora muito nova, tem a música pulsando em suas veias. Nasceu para cantar, tocar, entreter, estrelar os “palcos” por onde passa. Se não bastasse o talento, carrega um carisma e uma energia em suas performances capaz de contagiar a todos. Brilho próprio, alma de popstar!

Virtuosa na percussão (desde bebê, aliás) e no dedilhar de suas guitarras, incrivelmente hábil em diversos instrumentos de sopro (da gaita ao saxofone), Jackie Bonn é capaz de aprender a tocar um instrumento em pouquíssimo tempo. Nestes últimos dias, tem focado no seu piano. Já é capaz, inclusive, de criar novos arranjos para suas músicas preferidas. Seu objetivo é tocar piano e guitarra ao mesmo tempo. Jackie Bonn é um gênio!

Tal genialidade é acompanhada de um temperamento bem peculiar. Jackie Bonn (ela não deixa ser chamada de Jackie ou de Miss ou Senhorita Bonn) é geniosa, orgulhosa, dominadora, um tanto arrogante, outro tanto vaidosa. Sincera em demasia. Estilosa, performática, luxuosa (mas sem ser espalhafatosa). Odeia que invadam seu espaço, principalmente na hora do “seu show”. Não à toa, não costuma dividir o palco com ninguém. Chora, berra e faz cenas incríveis se alguém tenta usar seu microfone ou tocar seus instrumentos. Creio eu, tem imensa dificultada em compartilhar a atenção. Pudera, é o “seu show”, o seu momento de conquistar, de brilhar.

Jackie Bonn é sábia e criativa. Compõe letras e músicas com uma rapidez absurda. Inclusive, em línguas que nem conheço. É conhecida pelo seu forte (e duradouro) agudo. Aliás, facilmente encontrado em suas composições.

Contudo, a origem de Jackie Bonn é qualquer coisa desconhecida. O sobrenome, por exemplo, é incomum, de origem francesa antiga (Normandia) e anglo-saxônica. Encontrado, nos dias de hoje, no Reino Unido e Alemanha. Não se sabe qual a relação entre a jovem artista e esses países.

O fenômeno pop surgiu de um dia para o outro, com seus óculos escuros, sorriso cativante, cabelos esvoaçantes e seus instrumentos e microfone coloridos, feitos com peças de lego e criatividade marcante. Quando não está brilhando em “seus palcos”, Jackie Bonn volta a ser Madalena Freire. Minha Madá.


quinta-feira, 21 de maio de 2020

HOME OFFICE



Neste tempo de quarentena, terça-feira é igual à domingo, sexta-feira vale como sábado. Não há fim de semana, feriados são inúteis e a segunda-feira não é necessariamente o primeiro dia útil da semana. Home office, trabalho remoto e teletrabalho são nomenclaturas fofas para um regime insano: trabalhar confinado com as crianças.

Leio relatos incríveis nas mídias sociais de como as famílias se tornaram mais unidas com a quarentena. Fotos no Instagram de mães, com corpos atléticos, todas bem nutridas, correndo com seus 5 filhos nas lindas brumas e savanas. Imagens de pais a cozinhar um delicioso risoto de açafrão enquanto brincam de cavalinho com seus 8 filhos. Espetáculo. É o despertar de uma nova civilização, mais feliz, centrada na família e na sua comunidade. Só que este povo não deve trabalhar, pois não?!

Olha, eu tenho tentado arduamente ajudar na criação das crianças e na manutenção de um bom ambiente familiar, além de trabalhar. Confesso, existem bons dias, sim. Dias em que as coisas dão minimamente certo. Mas, existem dias como a última segunda-feira…

Acordei sabendo que precisava terminar uma planilha. Finalizar e formatar um banco de dados para um projeto importante. Mentalizei que a Paz teria de passar o dia em Lisboa, trabalhando. Ainda na cama, programei os horários para trabalhar, os horários para brincar com as minhas filhas, dar comida, o período da sesta (fundamental para o processo como um todo). Se tudo funcionasse como eu esperava, a segunda-feira poderia se “um daqueles dias que as coisas correm minimamente bem”.

Após uma boa manhã, que incluiu cansar ao máximo as minhas filhas, chegou a hora do almoço. Elas cansadas, era dar o almoço e colocar na cama. Porém, tal cansaço gerou um problema adicional: lentidão extrema em almoçar por parte da filha mais velha e uma birra histérica que culminou com uma aparente (e talvez forçada) falta de apetite por parte da mais nova. Findada a ceia, hora de pôr as duas para dormir!

Então, parto para um almoço rápido, seguido de um café e, então, era hora de sentar a frente da tela do computador e da bendita planilha. O silêncio…a paz…a tranquilidade. Porém, tudo que é bom dura pouco.

Carolina acordou cantando e pulando na cama. No rosto, umas marcas de picada. Maldita melga! Raquete de matar moscas em uma das mãos, Carolina na outra. Inicia-se uma caça descontrolada à inseto alado no quarto.

Presa encontrada, cheirinho de churrasco no ar. O caçador, de revoltado passa a extasiado com apenas uma “raquetada”. A vítima do mosquito, com seu rosto açoitado, parece feliz com os galopes ao colo do pai.

Com o barulho do ocorrido, Madalena também acordou. Pronto. A sesta, que poderia ter durado 3 horas, não passou de 1 hora. E esta única hora não foi o suficiente para o término da planilha. Era chegada a hora da criatividade.

Entre lanches e banhos de piscina, passaram-se duas horas (aquelas que eu precisava para trabalhar). A Madá seguiu a vida dela, a brincar com as primas. A Carol lembrou que era uma excelente oportunidade para passar mais tempo com o pai…

Sento-me para trabalhar enquanto ela fica a volta com as músicas. Corre para um lado, dança para o outro. Põe as mãos no rosto e abre a boca. Sono, cansaço, já sei. Não dura 2 minutos e ela já está grudada a minha perna. Diferente dos seres caninos, eu mexo a perna e ela não desgruda. E ela começa:

- Papai, papai, “uca” (que significa música em Carolês).

- Sim, querida.

Desligo a música da TV e ligo no meu computador. Sento ela na cadeirinha, ao meu lado, encho a mesinha de biscoitos e bolachas, coloco uma música do sapo qualquer e volto a trabalhar. Não tarda e ela:

- Papai, papaaaaaai!...”Ahaina” (aranha em Carolês).

- Ok, meu anjo.

Mudo para a música da dona aranha. A música, que não dura nem dois minutos, termina. Assim como o meu sossego.

- Paaaaaai!...Pela “cidadgi” (cidade em Carolês).

- Carolina. Então?! Já começará outra música. Espera.

- Paaaaaaaaaaaaaaai!...Pela “cidaaaaaaadgi” (cidaaaaaaaaaade em Carolês).

- Ô Carol, calma!

E lá fui eu achar a “música do autocarro” para ela. De modo a facilitar minha vida, já tratei de colocar uma série de músicas que ela gostava na fila. Enquanto isso, a planilha de Excel lá sozinha, só no AutoSave.

Volto à tabela. Hora de correr com o projeto.

- Papai!?...Pela “cidadgi” (já aprendeu, não é?)

- Ô diabo! Não! Chega desta música.

- “Cidaaaaaadgiiiiii!” (sim, você entendeu…)

- Não!

- “Chin” (sim em Carolês)!

- Carol!

- “Cidadgi”, “cidadgi”, “cidadgi”, “cidaaaaaaadgiiiiii”!

Fecho o laptop. Me levanto. Deixo-a falar sozinha. Caminho cabisbaixo para a cozinha. Abro o freezer, pego uma cerveja, procuro o abridor.

O primeiro gole ajuda a diminuir o zumbido estridente no ouvido esquerdo. O segundo gole ajuda a acalmar. O terceiro gole me dá ânimo para voltar a andar na direção da Carol. O quarto gole me dá forças para abrir o laptop. Não para voltar a mexer na planilha, mas para colocar a música da “cidagi”. Carol, então, ri com a boca larga e seus 50 dentes, manda beijos e dança com os ombros. O quinto gole é para abstrair do trabalho, que ficará para depois.

terça-feira, 5 de maio de 2020

A INTELIGENTE E A ESPERTA




Segundo o informal (e incógnito) “dicionário Walmyr”, o Ser, dotado de inteligência, entende como funcionam as coisas, como o “mundo gira”. Já o Ser, dotado de esperteza, compreende como funcionam as pessoas enquanto esse mundo está a girar. A inteligência é racional, analítica, perspicaz, teórica, contínua, progressiva. A esperteza é intuitiva, lacônica, viva, prática, volátil, veloz. Inteligência sem esperteza é quadrada, ortogonal, direta, fixa, binária, rica em dados, pobre em cores e tons. A esperteza sem inteligência é fugaz, meândrica, temerária, imprudente.

Acredito que todos os indivíduos nascem dotados de inteligência e esperteza. Sim, tais características podem variar de peso (ou importância) para cada ser humano, visto que cada ser é único e o exercício de seus dotes, ao longo do tempo, podem acentuar ou amenizar tais diferenças. Normal e natural.

Dito isso, vamos aos fatos atuais…(descontando o olhar de um pai babado)…

Madá é a inteligente. É carregada de uma áurea característica dos de sua “classe”. Não raro, vejo pessoas boquiabertas a observá-la, seja nas suas conversas de semi-adulta, no empregar de palavras que nem o pai ou a mãe utilizam, na racionalidade com que gere (ou não) problemas que vão surgindo a sua frente ou na capacidade de compreensão do que está a sua volta. Tamanha coerência no modo de raciocinar o todo, contrasta, muitas vezes, com a incapacidade de lidar com suas próprias emoções. Madalena é curiosa (em todos os sentidos da palavra).

Carol é a esperta. Para além de “ser ligada à corrente” (assunto suficiente para um texto futuro), ela é dotada de uma velocidade de raciocínio que deixa todos a volta atônitos. O “desenrasco”, a destreza em lidar com o emocional dos que estão a sua volta é incrível. Carolina é daquelas que se bastam. Não perde tempo com “bobeiras” e consegue o que quer (incluindo furtar bolachas e frutas das mãos das outras criancinhas…). Carolina é viva (em todos os sentidos da palavra).

Claro, minhas filhas são muito mais do que o descrito acima. Aliás, todos nós somos mais do que pode ser descrito em meras frases ou orações desorientadas. Mas é engraçado ver como duas irmãs, mesmo tão novas, podem pensar e agir de forma tão diferente.

Acredito que tal diferença tenderá a diminuir ao longo do tempo e que, à medida que cresçam e se desenvolvam, enquanto irmãs e melhores amigas, tais características possam se misturar. O encanto e até a inveja podem fazer com que uma se alimente das virtudes (e defeitos) da outra e vice-versa. O futuro o dirá…



quinta-feira, 30 de abril de 2020

MUDANÇA DE PLANOS



Dinamarca é um destino que eu e a Paz, no meio de nossos sonhos e promessas de viagens futuras, sempre especulamos. Surgia raramente em alguma conversa nossa, mas, por motivos totalmente diferentes para ambos, o nome do tal país nórdico estava sempre “pairando no ar”. Ela, super interessada na cultura, nos museus e na arquitetura do país. Eu, lógico, louco para conhecer a Legoland! E a fábrica da Lego também, claro! Se calhar, até ver uma partida de futebol. Afinal, futebol também é cultura, não? Um jogo de futebol de legos (“legobol”?), então, seria o auge!

Eis, então, que a Paz me presenteia com uma viagem de quatro dias para a Dinamarca. Aventura a dois, vale ressaltar (e festejar). Umas milhas, um feriado, uns avós ansiosos por ter as netas em casa e estava concretizada a viagem. Passagens compradas para o dia 30.04.2020, aproveitando o feriado de 1º de maio.

COVID-19. Mudanças de planos.

Antes de mais, não estou aqui a reclamar por ter perdido a chance da minha vida de poder passar 4 dias dentro da Legoland. (Na verdade, seriam 3 dias, já que o primeiro eu passaria no hotel, dormindo ou me beliscando para ver se era verdade que não escutava gritos ou choros de criança). Estou, apenas, constatando o fato óbvio.

Já não iremos para Copenhagen hoje, nesta semana ou na próxima. Raios! Entre 1 e 3 de maio, não poderemos nem sair do concelho onde estamos!

Minhas viagens, de momento, resumem-se a ir ao mercado. Fico super feliz de ir, a qualquer hora do dia, em qualquer dia da semana. Uma aventura de 3 horas, em busca de papel higiênico, bolachas e biscoitos, barras de chocolate e bebidas com teor alcoólico leve a moderado.

Quando sei de véspera que terei de ir às compras, nem durmo direito à noite, tamanha a ansiedade. Acordo mais cedo, me visto todo bonitinho, limpo as mãos, faço a checagem do álcool gel, dou uma lustrada na máscara. Vez ou outra, até penteio o cabelo. Faço hora para as pessoas da casa acordarem e o mercado abrir. Entro no carro a cantar e saltitar. Torço para ter engarrafamentos, para ter filas na porta do mercado, para não encontrar itens no mercado e ter de ir em outro. (Confesso, já até deixei de comprar algo em um mercado só porque “sabia” que poderia encontrar no outro…)

Sim, a palavra que estás a pensar é…patético.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

LOUVRE



Desde que as ditas quarentenas e reclusões se iniciaram, ao redor do globo, uma onda de companheirismo, correntes positivas e sentimento de ajuda ao próximo tomou conta das redes sociais. Mensagens alegres e otimistas, dicas e ideias de como atravessar da melhor forma possível o período de confinamento. Exercícios diários, ginástica, ioga, pilates, meditação e as mais diversas formas de respiração. Receitas de alimentação saudável, dicas de saúde mental e psicológicas. Dicas mil de leitura, filmes e entretenimento virtual. Um mar de inspiração para aqueles que sabem nadar em tão diferentes ondas.

Eu, confesso, fiquei só na beira deste mar, ali na marola. Um exercício matinal aqui, um suco de laranja ali, uma prova de bolo sem glúten acolá. E o blog desoriente-se que, por si só, já me parece um tsunami…

Dentre todas as dicas, umas me chamaram mais a atenção - as visitas virtuais. Não que seja uma ideia nova (turismo digital, por exemplo, já ocorre há tempos), mas começaram a inundar “meu Whatsapp” com dicas de visitas virtuais para os mais diferentes locais, seja com foco turístico ou cultural.

Resolvi, então, focar algum esforço nos museus, já que a oferta, parece-me, ocorre para todas as principais instituições do planeta. Uma ideia, a princípio, espetacular. Ora, você, de casa, a rondar pelos mais diferentes museus, a conhecer as mais diferentes obras, peças e amostras. Se conectar com praticamente todas a civilizações que nos precederam e que existem até hoje, ter a história da humanidade na palma de sua mão.

E, logo o primeiro espaço cultural que me veio à cabeça foi o Louvre. Tive a chance de visitá-lo brevemente no passado. Lembro-me de pouca coisa, por conta das longas filas e do número quase que irracional de gente a perambular pelo museu. Uma multidão que parecia só querer ver a Mona Lisa, embora não tivesse a mínima noção de onde ela poderia estar. Recordo-me, também, de ter de andar em uma velocidade um pouco mais acelerada para que pudéssemos ver o máximo de coisas possível (coisas, por favor, entendam como obras artísticas e relíquias das mais antigas e fantásticas civilizações). A sensação que me deu era que, basicamente, estava em uma espécie de gincana, onde o objetivo era chegar o mais rápido possível a uma das saídas do museu, vendo o máximo de coleções ao meu alcance, sem atingir ou esbarrar em nenhuma obra, atropelar uma única criança, derrubar máquina de fotografar alguma ou ser engolido pelos grupos de turistas alvoroçados. Canseira.

Pois, de casa para o Louvre. Só bastava uma boa conexão de internet, telefone devidamente carregado, disposição e, principalmente, tempo livre.

É, muito tempo livre, visto que o maior museu do mundo leva em torno de 100 horas, segundo cálculos matemáticos avançados (feitos por pessoas que, assim como eu, não são matemáticas…) baseados na premissa que um indivíduo leva apenas 10 segundos na frente de cada uma das 38.000 obras expostas. Segundo alguns entendedores de arte e afins (que não é o meu caso…), um tempo para a apreciação de uma obra gira nos 30 segundos, logo, passarias não 100 horas, mas 100 dias para percorrer os 72.735 m² do museu. (Fora os, sei lá, dez minutos que perdes a fitar os olhos da dita La Gioconda!)

Então, temos aqui um pequeno problema. Onde um pai de família, a viver enfurnado dentro de casa com duas crianças pequenas, consegue arranjar tanto tempo livre para percorrer, mesmo que virtualmente, o Louvre?! Entre troca de fraldas, leites, birras, bolachas, pão, mais bolachas (e birras), frutas, brinquedos, choros, almoço, sestas, lanches, passeios secretos pelo bosque, um pouco mais de bolachas, outras frutas, limpar o chão das migalhas de bolachas e dos nacos de frutas, trabalhos de escola (também virtual), banhos, um bocadinho mais de bolachas, um bocadinho mais de birras (isso nunca acaba), jantar, remédios, talvez mais bolachas, correrias e gritos histéricos “pré-cama” pela casa e o processo de por na cama, não creio haver muito tempo livre para o Louvre. Este ou qualquer outro dos museus.

O tempo que sobra é para trabalhar a mente, comer, beber, (vez ou outra) tomar banho, reclamar de vírus e deletar as dicas que recebo de como viver bem durante o processo de confinamento.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

O ESCARAVELHO



Madalena e Carolina seguem seu passeio pelo “bosque”, ao lado de casa. Entre correrias, tropeços, gritos e danças (de adoração ao sol, penso eu), elas sempre se deparam com algo novo. E a novidade da vez são os escaravelhos. Na verdade, já fazem uns dias que a Madá vem criando uma relação de empatia com esses animais.

Para quem não sabe ou não consegue associar o nome a “pessoa”, escaravelho é atribuído aos animais do filo dos artrópodes, da classe dos insetos, da ordem dos coleópteros e da família dos escarabeídeos, composta de cerca de 15 espécies, das mais diversas formas (sim…pesquisei no Google). Para a Madá, é apenas aquele “bichinho lindo, todo pretinho, que anda de um lado para o outro e tem medo de gente”.

Voltando ao passeio, Madá, que vai bem a frente de nós (é a líder, segundo ela), se depara com um escaravelho em especial. Ele é menor que os demais. Então, agachada, começa a conversar com o diminuto animal. Por sua vez, ele se encolhe logo que ela começa a tocá-lo, mesmo que de forma leve e suave, como se quisesse acalmá-lo ou ganhar a sua confiança. Madá faz “carinha de querida” e voz de bebê para o animal (sim, vai resultar…). Tenta de tudo para que o inseto se sinta confortável com sua presença.

Enquanto isso a Carol vem bem atrás, atrasada devido as pernas curtas e sua incapacidade psicomental de focar em um ponto ou seguir uma linha reta. Chama pela irmã ao mesmo tempo em que agacha-se e uiva para o céu (sim, ela é destas).

Madalena começa a ficar apreensiva. Não sabe o que fazer para o bichano lhe fazer companhia. Começa a fazer perguntas ao bicho e, visto que o retorno é “zero”, aponta-se para mim:

- Pai, por que ele não se mexe?

- Ele está com medo de você, Madá.

- Mas eu não quero magoá-lo. Só quero que ele ande comigo.

- Só isso? E esse ele não quiser? Ou não puder? Ele é daqueles pequenos? Pode ser um filhote a procura da mãe. Deixa ele aí sossegado até a mãe voltar.

- Posso esperar com ele?

- Fica a vontade, o pai seguirá o caminho com a Carol.

- Tá bom, pai. Tchau.

E então, “Bam”! Carol chega a cena e pisa o escaravelho. Madalena, com os olhos arregalados, volta-se para mim, horrorizada. Carol ri! Feliz ela, que encontrou a mana e o escaravelho. (Sim, eu também ri…)

Madá cruza os braços, faz cara feia para a irmã mais nova e, antes de esboçar uma reclamação, contempla um outro escaravelho logo a seguir. Vida que segue.