Neste
tempo de quarentena, terça-feira é igual à domingo, sexta-feira vale como
sábado. Não há fim de semana, feriados são inúteis e a segunda-feira não é
necessariamente o primeiro dia útil da semana. Home office, trabalho
remoto e teletrabalho são nomenclaturas fofas para um regime insano: trabalhar
confinado com as crianças.
Leio
relatos incríveis nas mídias sociais de como as famílias se tornaram mais
unidas com a quarentena. Fotos no Instagram de mães, com corpos atléticos,
todas bem nutridas, correndo com seus 5 filhos nas lindas brumas e savanas. Imagens
de pais a cozinhar um delicioso risoto de açafrão enquanto brincam de cavalinho
com seus 8 filhos. Espetáculo. É o despertar de uma nova civilização, mais
feliz, centrada na família e na sua comunidade. Só que este povo não deve
trabalhar, pois não?!
Olha,
eu tenho tentado arduamente ajudar na criação das crianças e na manutenção de
um bom ambiente familiar, além de trabalhar. Confesso, existem bons dias, sim.
Dias em que as coisas dão minimamente certo. Mas, existem dias como a última
segunda-feira…
Acordei
sabendo que precisava terminar uma planilha. Finalizar e formatar um banco de
dados para um projeto importante. Mentalizei que a Paz teria de passar o dia em
Lisboa, trabalhando. Ainda na cama, programei os horários para trabalhar, os
horários para brincar com as minhas filhas, dar comida, o período da sesta
(fundamental para o processo como um todo). Se tudo funcionasse como eu
esperava, a segunda-feira poderia se “um daqueles dias que as coisas correm
minimamente bem”.
Após
uma boa manhã, que incluiu cansar ao máximo as minhas filhas, chegou a hora do
almoço. Elas cansadas, era dar o almoço e colocar na cama. Porém, tal cansaço
gerou um problema adicional: lentidão extrema em almoçar por parte da filha mais
velha e uma birra histérica que culminou com uma aparente (e talvez forçada)
falta de apetite por parte da mais nova. Findada a ceia, hora de pôr as duas
para dormir!
Então,
parto para um almoço rápido, seguido de um café e, então, era hora de sentar a
frente da tela do computador e da bendita planilha. O silêncio…a paz…a
tranquilidade. Porém, tudo que é bom dura pouco.
Carolina
acordou cantando e pulando na cama. No rosto, umas marcas de picada. Maldita
melga! Raquete de matar moscas em uma das mãos, Carolina na outra. Inicia-se uma
caça descontrolada à inseto alado no quarto.
Presa
encontrada, cheirinho de churrasco no ar. O caçador, de revoltado passa a
extasiado com apenas uma “raquetada”. A vítima do mosquito, com seu rosto
açoitado, parece feliz com os galopes ao colo do pai.
Com o
barulho do ocorrido, Madalena também acordou. Pronto. A sesta, que poderia ter
durado 3 horas, não passou de 1 hora. E esta única hora não foi o suficiente
para o término da planilha. Era chegada a hora da criatividade.
Entre
lanches e banhos de piscina, passaram-se duas horas (aquelas que eu precisava
para trabalhar). A Madá seguiu a vida dela, a brincar com as primas. A Carol
lembrou que era uma excelente oportunidade para passar mais tempo com o pai…
Sento-me
para trabalhar enquanto ela fica a volta com as músicas. Corre para um lado,
dança para o outro. Põe as mãos no rosto e abre a boca. Sono, cansaço, já sei. Não
dura 2 minutos e ela já está grudada a minha perna. Diferente dos seres
caninos, eu mexo a perna e ela não desgruda. E ela começa:
- Papai,
papai, “uca” (que significa música em Carolês).
-
Sim, querida.
Desligo
a música da TV e ligo no meu computador. Sento ela na cadeirinha, ao meu lado,
encho a mesinha de biscoitos e bolachas, coloco uma música do sapo qualquer e
volto a trabalhar. Não tarda e ela:
-
Papai, papaaaaaai!...”Ahaina” (aranha em Carolês).
- Ok,
meu anjo.
Mudo
para a música da dona aranha. A música, que não dura nem dois minutos, termina.
Assim como o meu sossego.
-
Paaaaaai!...Pela “cidadgi” (cidade em Carolês).
-
Carolina. Então?! Já começará outra música. Espera.
- Paaaaaaaaaaaaaaai!...Pela
“cidaaaaaaadgi” (cidaaaaaaaaaade em Carolês).
- Ô
Carol, calma!
E lá
fui eu achar a “música do autocarro” para ela. De modo a facilitar minha vida,
já tratei de colocar uma série de músicas que ela gostava na fila. Enquanto
isso, a planilha de Excel lá sozinha, só no AutoSave.
Volto
à tabela. Hora de correr com o projeto.
-
Papai!?...Pela “cidadgi” (já aprendeu, não é?)
- Ô
diabo! Não! Chega desta música.
-
“Cidaaaaaadgiiiiii!” (sim, você entendeu…)
-
Não!
- “Chin”
(sim em Carolês)!
-
Carol!
-
“Cidadgi”, “cidadgi”, “cidadgi”, “cidaaaaaaadgiiiiii”!
Fecho
o laptop. Me levanto. Deixo-a falar sozinha. Caminho cabisbaixo para a cozinha.
Abro o freezer, pego uma cerveja, procuro o abridor.
O
primeiro gole ajuda a diminuir o zumbido estridente no ouvido esquerdo. O
segundo gole ajuda a acalmar. O terceiro gole me dá ânimo para voltar a andar
na direção da Carol. O quarto gole me dá forças para abrir o laptop. Não para
voltar a mexer na planilha, mas para colocar a música da “cidagi”. Carol,
então, ri com a boca larga e seus 50 dentes, manda beijos e dança com os
ombros. O quinto gole é para abstrair do trabalho, que ficará para depois.