quinta-feira, 2 de abril de 2020

O SENHOR DO BARCO

Início do período de reclusão social. Por sugestão dos principais órgãos e instituições de saúde, nenhum ou pouquíssimo contato com outros cidadãos. Sair de casa, em Portugal, só em casos de extrema necessidade.

Pois bem, surgiu uma tal extrema necessidade de sair de casa. Pegar o carro e ir a Lisboa. O caminho a ser percorrido envolvia pegar um ferry boat. Nada demais, visto que a circulação de veículos se encontra um tanto reduzida nos dias de hoje.

Na hora de pagar o ticket do barco, saco um cartão do bolso. Normal. E lá vem o senhor com a máquina de mão, pronto para pegar meu cartão. Ele vem todo pomposo, como sempre, com sua cara emburrada e de poucos amigos. Porém, nesses dias atuais, julguei que, para sua própria proteção, estaria usando umas luvas e uma máscara qualquer. Não, para que? Ele deve ser dos meus, que acha que tomar duas cervejas antes do almoço, uma taça de vinho durante a refeição e um medronho antes da sesta o manterá livre das tais doenças que andam por aí (e por aqui).

Aproximei o carro lentamente e olhei para ele, ainda custando a acreditar que ele não possuía nenhum tipo de proteção (sem ser a divina). Dei meu corriqueiro bom dia e levei com o seu silêncio cotidiano. Nós nos damos bem, assim. Ele pega meu cartão e leva a maquineta. E eu a espera que ele acabasse logo com o processo para ele me devolver o cartão. Sabe como é, sei lá por onde ele passou aquela mão. (Na verdade, nunca soube! Só o coronavírus para me fazer pensar nisso)

Eis que o senhor mal-humorado, depois de enfiar o cartão na máquina, leva a mão ao seu portentoso nariz e dá aquela esfregada, seguido de algo como um espirro ou sei lá o que. Termina por dar uma fungada para, depois, pegar o cartão com aquela mesma mão.

“Então, tás louco ou o que?!”…pensei. E agora, o que faço? Ligo o carro, acelero e deixo o cartão com o doente (sim, espirrou na minha frente, deve estar moribundo, não?) ou tento pegar o cartão? Como diabos vou pegar o cartão? Claro, também não tenho luvas (tão pouco máscaras ou qualquer coisa que o valha). Estou, faz uns dez dias, tentando comprar. Devo conseguir quando acabar a pandemia.

Ele estica a mão e me dá o cartão. Eu, sem ter muito o que fazer, recebo o “pacote da morte” e jogo em um dos compartimentos do carro. Vejo a Paz, minha mulher, ao meu lado com uma cara que era mais uma mistura de nojo com pena. Percebia que ela gostaria de serrar a minha mão, tudo em prol da nossa família, é claro.

O senhor acena para mim, com a cabeça, me dando adeus. Inédito, diga-se de passagem. Seria, esse, nosso último encontro?

Rapidamente, esfrego a mão nas calças (meramente psicológico, claro). Ligo o carro e dou a partida. Seguimos viagem até Lisboa.

Voltei a ver o senhor por esses dias. Ainda sem luvas ou máscara. Dei graças e Deus por ele estar bem. Passado o meu terror, comecei a pensar que eu poderia ter passado algo para ele. Eu ou os não sei quantos que passam por aquele barco todos os dias. O engraçado é que outros trabalhadores do barco usam os equipamentos de proteção individual. Ele, rabugento que é, deve achar que não é necessário. O tempo nos dirá.

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