sexta-feira, 17 de julho de 2020

BANSHEE


Diz-se, no folclore gaélico, que Banshee é um ente fantástico, um espírito feminino cujo grito seria um presságio de morte, um aviso de falecimento iminente de um membro da família a qual tal criatura estaria conectada.

O termo Banshee deriva do irlandês arcaico "Ben Síde", e corresponde a algo como fada-mulher, onde Ben significa mulher e Síde seria a forma possessiva de fada. Embora sem origem específica, historiadores traçaram as primeiras menções sobre as banshees em histórias celtas do século 8. Relatos baseados em uma tradição onde determinadas mulheres cantavam canções tristes para lamentar a morte de alguém, geralmente de sua própria família ou de famílias importantes da Irlanda.

Como toda mitologia, com o passar do tempo, os relatos confundiram-se com as crenças e ditos populares. Alguns desses relatos apresentavam as banshees como seres capazes de soltar gritos a serem ouvidos por quilômetros de distância, podendo estourar até mesmo um crânio. Outros tratavam as fadas-mulher como uma figura espectral flutuante, geralmente sendo extremamente assustadora, que apareceria sempre a lamentar.

Textos relatavam, ainda, pessoas que viam as banshees como mulheres aficionadas, tratando as mesmas como pecadoras e que aceitavam o álcool como pagamento para “cantar” a morte de alguém. Há os que clamavam que se fosse vista, a Banshee desapareceria em uma nuvem de névoa. Diziam, também, que os uivos emitidos por essas fadas seriam suficientes para relaxar até os ossos.

Sejam quais forem suas origens, as banshees aparecem na bibliografia principalmente sob um dos três disfarces: uma jovem, uma mulher ou uma pessoa esfarrapada. São comumente descritas como mulheres altas, esguias, de cabelos escorridos. Qualquer que seja a forma, porém, sua face é sempre muito pálida e seus cabelos podem apresentar-se negros como a noite, loiros como ouro ou ruivos como o sol.

Fato é que uma Banshee, segunda consta, pertence exclusivamente ao povo Celta. Ela jamais será ouvida a anunciar a morte de qualquer membro de outras etnias que compõem a população irlandesa, europeia ou mundial.

Bem, eu não creio ser de origem celta. Me vejo mais como produto de costelas oriundas de povos do hemisfério Sul. Não posso dizer o mesmo de minhas meninas. Filhas de mãe portuguesa e com os dois avós maternos do Norte de Portugal, região ocupada pelos celtas por volta do século 3 A.C., aqui podemos encontrar um fio de ligação entre os celtas e minha família, embora tal período histórico e região da Europa não permitam a conexão com o período de referência das banshees. E qual a minha razão para esta tentativa frustrada de vincular minhas filhas as fadas?

Tenho em casa algo que eu julgo ser, por falta de outra palavra, sobrenatural: o grito da Carolina, minha filha de 1 ano e meio de idade. Alguns dirão que é normal uma criança dessa idade gritar, outros dirão que o período pandêmico me deixou menos paciente e mais enjoado. Concordo com tudo. Sim, ela está na idade de gritar e berrar. Sim, ela é a segunda filha e precisa de se fazer ouvir. Sim, ela é um pequeno ser humano muito intenso e tal intensidade precisa ser manifestada de alguma forma. Não discordo de nada posto acima.

Mas há algo de diferente na criança em questão (e não vem de agora). Seus gritos, berros ou uivos são de outro mundo. Quando ela grita, o mundo parece parar. É um som alto, agudo, estridente. Porém, não é ruidoso ou barulhento. Dói ao princípio, segue como uma agulha fina e contundente e finaliza como se estivéssemos anestesiados.

Não importa quão barulhento esteja o ambiente, seu grito parece que cala tudo a sua volta. Grito, esse, que é acompanhado quase sempre de um sorriso largo e cheio de pequeninos dentes.

O grito impressiona, choca, atordoa, incapacita. Ele preenche todos os espaços, desloca a mente do corpo, enrijece os nervos, esmorece os músculos, dá início ao hiato. Tudo para, menos ela. Basta soltar a voz e os seres humanos a sua volta padecem.

Carolina não é irlandesa, (ainda) não voa, parece ser bem alegre, só canta “Baby shark”, “As rodas do ônibus”, “A dona aranha” e outras músicas infantis irritantes. Carolina não bebe álcool, não carrega (muito) ódio em seu coração, não desaparece nas nuvens ou possui um ar assustador. Não se assemelha a uma jovem ou a uma mulher e, quase nunca, está vestida de forma esfarrapada. Não é loira, está longe de ser ruiva ou pálida. Não possui quase nenhuma das características provenientes das fadas-mulher. Ainda sim, seus gritos parecem atravessar meu crânio e relaxar meus ossos.

Se calhar, com essa tal de globalização, as banshees de outrora evoluíram para o que são, hoje, pequenas, roliças e ternurentas criaturinhas que adoram gritar até estourar os vidros das casas. Digo isto porque Carolina, desde que compreendeu que poderia emitir sons usando como ferramentas seus pulmões, diafragma, cordas vocais e todo o resto do seu fantástico aparelho fonador, ainda aos 3 ou 4 meses de idade, desandou a gritar para o mundo. Berra sorrindo, chorando, triste ou alegre, do amanhecer (com o leite) ao anoitecer (com a papa). Carolina berra.

De toda a forma, a lenda diz que banshees não causavam morte; elas serviam apenas como um aviso disso. No caso da minha amada filha, se ela não causa a minha morte, cada urro histérico que dá põe fim a minha paciência e aniquila meu humor. E o único aviso que seus gritos me dão é que o histerismo começou e está na hora de ela ir para a cama, que amanhã é um novo dia.