quarta-feira, 5 de maio de 2021

14

Lá se vão 14 anos de união. Uma história de muito amor, companheirismo, loucuras, alegrias e requintes de aleatoriedade. Isso é fácil de se entender quando se acompanha a relação do casal. Torna-se ainda mais evidente quando lembramos dos acontecimentos do princípio de 2007.

Conhecemo-nos em uma daquelas noites quentes de janeiro, em um show de samba no Circo Voador. Uma noite que, por si só, já daria um conto e que marca o início da tal aleatoriedade.

Convivemos, pela primeira vez, durante o Carnaval, em uma viagem para Paraty.

Conectamo-nos ao longo dos meses seguintes. Tornamo-nos amigos com o aumentar da convivência, através de gostos em comum, experiências trocadas e de estilos de vida que se relacionavam e se completavam.

Admiramo-nos mutuamente ao longo deste tempo, motivando um companheirismo que parecia ser algo mais, talvez.

E experimentamos essa sensação de algo mais em um domingo qualquer na Casa Rosa. Uma conversa ao pé do ouvido, uma dança…faísca!...saímos os dois a correr, cada um para o seu lado, talvez sem entender o que se passava. Jovens, miúdos, estúpidos!

Envolvemo-nos, enfim, na semana seguinte à faísca. Em uma daquelas noitadas da Lapa, as coisas aconteceram. Com a ajuda dos amigos, uma certa dose de estresse e com a clara conexão que já tínhamos, demos o nosso primeiro beijo. Madrugada de 5 de maio de 2007. Inesquecível! Consigo ver até hoje a cena. A satisfação de alguns de nossos amigos à volta, que já sabiam do inevitável futuro.

Juntamo-nos, logo depois. E não nos largamos mais. Um relacionamento que se alimenta, respira, vive do que passamos juntos e da forma como levamos a vida ao longo deste tempo todo. Escolhas e caminhos dos mais aleatórios que culminaram em um contínuo, insistente e incansável caso de amor.

Afinal, ainda existem muitos textos a serem escritos sobre nós.


sábado, 23 de janeiro de 2021

TODOS OS DIAS SÃO SÁBADO

 


Escolas fechadas, crianças em casa. O dia todo, todos os dias.

As crianças já não vão para a escola logo pela manhã. Elas também já não chegam cansadas em casa durante a semana. Já não há a desculpa de dormir cedo no domingo porque segunda tem de acordar cedo para ir para as aulas. As educadoras Eva ou Cecília já não fazem parte do seu dia-a-dia. Tampouco os amiguinhos da escola. Somos só os quatro….

A sala de aula, agora, é a minha sala. Pintar só é arte se for no encontro entre o lápis vermelho e o sofá ou com as mãos sujas de morango e banana nas paredes do corredor. Elas até possuem um quarto. Lindo, amoroso, quentinho, cheiroso. Mas só entram no bendito cômodo para pegar bugigangas e espalhar pelo resto da  casa. Nunca voltam do quarto de mãos a abanar. Assim, as portas dos guarda-roupas já não fecham. A estante dos brinquedos se torna um mero enfeite. Já os brinquedos, soltos e livres, se multiplicam. Dá onde eles vieram? Quem deixou entrar tanta boneca nessa casa? E aquele monte de peluche? Não sabem que os bichos de pelúcia fazem mal ao (meu) mundo?!

O recreio das crianças é entre o meu quarto e a cozinha. Minha cama é o pula-pula perfeito. O sofá é uma piscina multiuso: mergulhos, saltos ornamentais e nado sincronizado.

Almofadas são tapetes, toalhas são tapetes. Já os tapetes são cobertores. Cobertores são capas de heroínas, cavernas de monstros e, claro, tapetes.

A casa cheira a fralda suja. As luzes, de noite ou de dia, permanecem acesas. Nacos de pão e farelos de bolacha dividem espaço no chão da casa. Manchas de iogurte, ainda bem, somente nas almofadas e na tela da TV.

Gritaria, histeria, discussão, esporro. Choro, teatro, sorriso, correria. Pela casa toda. O dia todo, todos os dias.

Não há mais dias de semana. É o fim de um cotidiano que se pode chamar de “normal”. Há uma nova rotina, mesmo que caótica. Todos os dias são sábado.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

AQUELE MOÇO DA OBRA

Lá vem ele. De roupa trocada, cara lavada, barriga forrada e sorriso no rosto. Simpatia deve ser sinônimo de respeito ao trabalho. Estar de má cara não deve ser bem visto. As manchas na roupa e as calças remendadas revelam as quantas batalhas. O dedo rasgado e os arranhões no braço remetem ao esforço atual. O roxo da unha já é tradição, mero percalço e, até, fonte de alguma anedota.

A sua luta é diária, inglória, ativa, sofrida. Já lá vão anos. Nem se lembra quantos. É mais do mesmo, sem trégua. Não reclama, é-lhe indiferente. Já nem sabe (ou cabe) razão. Sofre contido, quando tem tempo para tal. Ele bem que gostaria de parar, mudar, mas não é fácil. Nunca foi, para ele e para muitos outros.

Estão sempre a labutar, colegas. Sorriem, discorrem em conversas, contos, estórias, piadas. Cantam alto e mal. Dançam o que conseguem, objeto de mais risadas e futuras ofensas. Ofender, aliás, é não ser parceiro, aliado, companheiro das horas difíceis.

Não podem parar, prazos a cumprir. O atraso, o erro, é sempre deles. Doenças e outras enfermidades são somente para os outros. Fadiga física, há muito, não existe. Enrijeceu, músculos e nervos. Calejou. Habituou.

Ele tem de estar apto, são, presente. Diariamente, onde for, para quem for. Não há horário vago, lacuna, dentro de sua rotina. Rotina, aliás, é um nome bonito para a vida que leva.

Quebrar, arrebentar, desmontar, soltar. Destruir. Juntar, embrulhar, varrer, carregar. Subir, descer, levar, trazer. Preparar, medir, calcular, errar. Desfazer, refazer. Ouvir. Segurar. Levantar, montar, moldar, soldar. Erguer, fabricar, pintar, apertar. Construir. E, como sempre, amanhã tem mais.


sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

BOLOTA DA SORTE

 

Madalena chega a casa, me procura e vem a saltitar em minha direção. Me chama, pede para eu abrir a mão e diz que me dará um presente. Trata-se, segundo ela, de uma bolota da sorte. Coloca a prenda em minha mão, me dá um beijo daqueles molhados no rosto (ela deu para beijar as pessoas, agora…) e segue sua vida. Pois é, em suas andanças pelo bosque, achou uma bolota da sorte e resolveu trazer para o pai.

Confesso, fiquei emocionado, paralisado com o gesto. Acredito que não deva ser todo o dia que ela encontre uma bolota da sorte pelo bosque. Penso que, para ela, uma bolota da sorte deva ser algo importante o suficiente para ser tratada como um presente, uma dádiva. E, logo eu, recebi a prenda.

Então, comecei a pensar mais sobre o assunto. Bolota da sorte. Qual a razão que ela teria para dar, justo para mim, a bolota? Falta-me sorte? Minha filha me vê como um azarado? Ela sabe o que é azar?! Preciso de mais coisas boas na vida? A bolota é mesmo da sorte?! Onde ela achou?! Posso mais?! O bosque!

Ou, simplesmente, minha filha entrou em casa, me viu sentado em um canto, com uma cerveja na mão, cabisbaixo ou pensativo, e resolveu me alegrar com um singelo afago.

Olha, não sei. O fato é que a bolota da sorte foi a melhor coisa do meu dia. Me fez ver (ou relembrar) que problemas podem ser resolvidos com pequenas atitudes.

Agora, ando a carregar uma bolota pelo bolso. Fora as formigas na calça, mal não faz.

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

A NOVIDADE


São 8:30 da manhã de uma quinta-feira, 27 de novembro do longo ano de 2015. Café da manhã tomado, mas a preguiça perdura.

Recebo mensagem da Maria da Paz, que ainda está no Nepal, a perguntar onde eu estou e se podemos falar por videochamada. Respondo, prontamente, que estou em casa e me preparo para ligar o computador. Desperto na hora, maldita adrenalina. Afinal, após minha volta para o Rio de Janeiro, qualquer mensagem da Paz é acompanhada de certa apreensão. Seria alguma notícia triste? Aconteceu algo de errado? Outro terremoto no Nepal? Perguntas que me faço enquanto o skype tentar conectar.

Eu voltei para o Brasil, no início de novembro, para procurar trabalho e tentar retomar nosso cotidiano, após o período sabático. A Paz ficou no Nepal, ao lado dos outros voluntários, para ajudar a finalizar algumas etapas dos projetos que participamos. Por tudo isso, comunicação que envolvesse chamada de vídeo no começo da manhã era, para mim, um motivo de preocupação.

Faço a chamada e, do outro lado, aparece uma sorridente e feliz Maria da Paz. O que me deixa confuso. Será que um terremoto fez com que batesse com a cabeça e terminasse de enlouquecer?  Ou esperou o marido cruzar o mundo de volta ao Brasil para começar a beber o famigerado raksi (um tradicional destilado produzido, geralmente no quintal de casa, a partir do arroz ou milhete e cujo teor alcoólico varia de acordo com a gana do produtor). Não sei. Se calhar estava feliz só de estar longe do esposo. Justo.

Fato é que, enquanto, trocamos as primeiras palavras, ela vai se empolgando, com mais sorrisos e joguinhos de palavras (sinal de embriaguez?). E eu, cismado, vou respondendo ao que ela pergunta com certa indiferença ou antipatia, afinal, era de manhã e meu humor, quando resolve acordar, só se revela depois do almoço.

E a Paz, toda serelepe, com um chumaço de folhas na mão. Pronto, vai me dizer algo. Trabalho? Projeto? Mais um projeto? Vai ficar no Nepal de vez?! Tenho de voltar para o Nepal?! Como pagarei uma passagem para o Nepal?! Lá vem ela com ideias!

Então, ela aponta algo parecido com um palito na direção da câmera. “Sabe o que é isto?”, pergunta ela. Respondo com meu tradicional (e sincero) “não faço a mínima”. Um tanto rude de minha parte, talvez. E, mesmo assim, ela se inflama, rindo. Estranho. Ela nunca reagiria assim ao meu “não faço a mínima”. Eu tento adivinhar outra vez, afirmando ser um termômetro e que ela estava muito doente, visto o comportamento atual. Ela balança a cabeça negativamente e aponta para as duas riscas azuis no meio do não-termômetro. Olho para aquilo como quem avista uma foca de óculos escuros e terno verde enquanto ela solta o grito: Estou grávida!

Neste instante, de um lado, uma pessoa com as bochechas rosadas e olhos marejados sorri o sorriso mais largo que já vi. Do outro, está uma pessoa perplexa, com ar matuto e feição de que, provavelmente pela primeira vez na vida, não tem resposta pronta para coisa alguma. Histeria de um lado, reticência do outro.

Ela, com um teste de gravidez em uma das mãos e um copo com vinho do outro, propõe um brinde. Eu me debruço contra a tela do computador, com a esperança de o dispositivo poder me sugar e transportar para o Nepal. Para fazer o que? Nunca saberei, pois, o débil laptop é incapaz de acompanhar meu desejo.

Ainda sem dizer se estou ou não feliz, corro para a geladeira a procura de algo para brindar. De manhã? Por que não?! 

A Paz, então, começa a tentar explicar o que estava acontecendo. Entre seguidos casos de mal-estar e enjoo, fizera o teste de gravidez e, após a indicação positiva, já até conseguira, com a ajuda dos amigos nepaleses, uma consulta médica. Tal consulta a ser realizada em um futuro próximo, logo depois de ela voltar das montanhas. Sim, Maria da Paz, a grávida, tinha uma visita marcada em umas vilas que sofreram com os enormes deslizamentos de terra ocasionados pelos terremotos. A gestante iria, inclusive, fazer longas caminhadas. Se tudo der certo e ela voltar dos Himalaias com saúde, seremos pais!

E pensar que, pouco mais de um ano atrás, optamos por largar tudo e seguir viagem para o dito Oriente. Uma (louca, um tanto obtusa e, claro, fantástica) ideia que partia de um desejo de descansar o corpo e mente. Se desorientar do que nos era cotidiano e procurar aliviar a dor por não conseguirmos ter filhos. E, no fim da viagem, o presente maior.

E, pensando nisso tudo, após ela perguntar se eu estava contente com a notícia. Eu respondo, com um sorriso comedido (e sem jeito…) que sim, que aquilo era a novidade de nossas vidas.

Por essas e outras que digo…essa viagem daria um livro…